A internet é tóxica.

A internet é tóxica.

#PrayForBorbaGato

A internet vive de ciclos, escreveu o poeta uma vez. Todo mundo sempre soube disso, desde as BBS’s que todo mundo diz que usou mas que, na época, era um vazio sem fim. Deve ser o mesmo fenômeno que assola o pobre Amoedo.

Mas ciclos.

Primeiro a gente passou pela internet moleque, que se focava nos fóruns. Micreiros de todos os cantos do país esperavam a meia-noite e o pulso único para poder falar sobre tudo e, de quebra, xingar a mãe de um anônimo. Era a faísca da internet naqueles anos de SBT On Line e linha discada. Anos depois, ainda sob a égide do WinModem, veio o Orkut (e a pré-história das redes sociais). Esse novo Google (que até aqui era apenas um buscador, que ainda se mantinha com base no algoritmo famoso erguido numa intrincada equação de autovalores para ranquear páginas) trouxe consigo uma rede social que nasceu de um projeto pessoal; e uma coisa muito louca e nova: AdSense.

Com o AdSense começaram a surgir aqueles que se intitulavam “probloggers” e que baseavam a sua criação de conteúdo na mídia escrita de acordo com os algoritmos de SEO do Google, e com isso os seus ganhos variavam de acordo com o cheque do Google a cada três meses (esse tempo era mais simples, um faturamento de US$1000 era alto, inclusive). Foi o começo da era dos blogues, e com eles veio a formação das comunidades, migradas dos fóruns para a sessão de comentários daqueles que eram maiores. Gradualmente foi criando-se uma comunidade ao redor daqueles sites com conteúdo dinâmico sobre nichos específicos. Hoje eles viraram mega-portais de informações e um repositório de gente incapaz e tóxica (Judão, Omelete, Jovem Nerd, Meio Bit, Tecnoblog e tantos outros foram criados nesse período da internet à lenha).

A chegada do Facebook iniciou uma terceira era de criação de conteúdo. Criamos as comunidades focadas em cultura, tecnologia, cinema, artes ou web (de forma genérica); migramos nossas contas do PHPBB pro Facebook e pro WhatsApp. O YouTube deu um jeito de trazer vídeos para todos, primeiro em doses de 10 minutos (menos até) e agora em doses cavalares com horas a fio de conteúdo duvidoso. Assim, ambas as redes foram criando um ecossistema que se retroalimenta. Os criadores de conteúdo fazem vídeos e postam nas redes sociais para atrair audiência. O YouTube paga pouco para esses criadores, tal qual na época do AdSense moleque.

Vemos então se criar a superestrutura monetária da internet que, mais tarde, iria parir a internet maluca de hoje com TikTok, influencers e streamers milionários. A migração foi ficando cada vez mais rápida. Do Facebook pro Twitter, pro Instagram, pro TikTok, pra Twitch e agora para vários locais distintos, onde cada rede de pessoas cria um sistema de dependência entre quem assiste e quem produz.

Claro que isso geraria um novo nicho e mais pessoas engajadas em retomar o que se tinha antes, principalmente aqueles que não gostam do ritmo alucinado das redes mais novas. Então se ressuscitou as “listas de email”. Sem discussão, como ainda rola no mundo Linux, mas com conteúdo “curado” por um humano, zero algoritmo. E assim, bem aos poucos, tudo isso foi virando um negócio. A lista redireciona o seu tráfego pro blog. A lista começa a ganhar tração e você cria um perfil para assinantes (com um grupo exclusivo) e logo existe uma versão paga da lista, com mais conteúdo. E com a pandemia, e um bom empurrão do Spotify, a lista se fundiu com o podcast — que deveria ser uma mídia livre de plataformas — e assim a sua lista virou um blog, um grupo de assinantes e um podcast. Aqueles mais arrojados mantém junto um canal no YouTube (ou em qualquer outro local com vídeo) e uma transmissão na Twitch.

Tem gente demais procurando a janta em caçamba de lixo para que a gente se dê o luxo de não falar de política.
@manotelli

De tudo isso, de todas essas transformações que foram mega reduzidas nesse texto, tiramos pouco aprendizado real. Mas, é bom notar o que é imutável em todas essas ondas e transformações dos modelos de negócios dentro da internet: as pessoas que coordenavam os fóruns eram brancas e com dinheiro (pelo menos classe média). Quase todos eram homens cis, também.

As listas, hoje, são enviadas por homens brancos, de classe média, cis. Alguns têm preocupação social, claro. Isso mudou (ainda bem, imagine um mundo eternamente dominado pela opinião de alguns ancaps) principalmente com a penetração de mais pessoas de classes baixas. O YouTube tem um canal de funk entre os maiores do mundo, e isso não é pouca coisa. Mas o núcleo da internet ainda é daqueles mesmos caras que iniciaram os fóruns nos anos 90. O pensamento modificou-se um pouco, tendeu para esquerda por uns anos e agora pende à direita liberal. Mas isso deve mudar, principalmente com os novos atores que a essa internet gera e com a compartimentalização que vemos no horizonte. Mas ainda assim, me incomoda deveras o fato de que, passados quase 30 anos da internet comercial, anda somos reféns do pensamento padronizado dessas pessoas. E quase que eu sou um deles, diga-se.

Essa característica mostra para mim como o acesso é parco. E o pior, como as ideias, o fluxo destas, dentro da internet acaba pressupondo um pensamento parametrizado ao redor da opinião de quem nos domina. Esses ambientes, por mais que sejam geridos de maneira muito competente, sempre acabam se tornando locais de algum tipo de opressão. Alguns acabam sendo oprimidos por questões de classe; muitos por questões de gênero. Não é por nada que vemos poucas mulheres comentando por aí, ou mesmo poucos pobres falando sobre os problemas mais latentes de não se ter previsão do que comer. E isso tem um impacto muito grande sobre como essas comunidades, pagas ou não, acabam se voltando para dentro de si. Investimentos, segurança, frivolidades. Preocupações mundanas que apenas aqueles que tem garantida a sua casa e a sua refeição conseguem ter. Disso tudo emerge, enfim, o megazord do “deboísmo”. Aquele ser que critica a polarização vivida pelo Brasil e que coloca no mesmo saco “mitada” e “lacração”. Que acha que o problema do Brasil é que não construímos pontes uns com os outros. Aquela pessoa que é minimalista gastando um salário mínimo em camisetas. Aquela outra pessoa que, hoje em dia, fala que o Bolsonaro é um pária mas que em 2018 acreditou na Vera Magalhães quando ela disse que era uma escolha difícil; e que acredita agora que é hora de uma terceira via; e que em 2024 vai dizer que não tinha como saber que o Luciano Huck seria um péssimo presidente. Enfim, aquela pessoa que não entende o processo democrático de amadurecimento de um povo e de um país, que acredita na teoria da ferradura e que acha que o PT precisa fazer autocrítica porque “temos pensamentos errados dos dois lados”.

A polarização faz parte do processo democrático que a maioria das pessoas diz defender. Mais do que isso, faz parte do processo de amadurecimento da escolha dos governantes. Ideias são postas à prova e falham, para então serem melhoradas. De tempos em tempos surge algum maluco que se elege com apoio de diversos setores e coloca em risco esse processo de decisões populares. Esse atrito é típico da democracia liberal, aquela que essas pessoas dizem defender. Criar pontes não existe, é uma retórica desonesta para se dizer que não quer pensamentos dissonantes. Laços criamos com aqueles que nos são caros e não com aqueles que estão discutindo conosco.

Levamos a certeza de que as pessoas precisam de mais apoio, de mais dinheiro e de mais humanidade; mas isso não nasce sem atrito. Não se ganha nada sem atrito. E isso é normal. O que não é normal é estar eternamente em uma busca por alienação e entes apolíticos no discurso.

E não se preocupar, não se posicionar, não se importar com nada disso (política, principalmente) é um privilégio absurdo. E só quem tem esse privilégio é quem tem dinheiro e acesso. E quem tem dinheiro e aceso controla a internet, seja ela em listas ou redes sociais.

Podemos migrar para a próxima onda/moda, seja ela qual for, mas a certeza final é que lá estará um cara branco de camiseta polo e sapatênis falando sobre internet, tecnologia e aviação. E não importa em quem ele votou, o que ele come ou qual a profissão dele, a única certeza é a de que teremos alguma forma de opressão em relação aqueles que são pobres, mulheres, pretos, LGBTQI+, etc.